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Diante das obras criadas por Elizabethe Biscarra como artista autodidata e que vê a si como não-artista ( sic) ao criar o que ela denominou “Pintura Quântica” sinto-me na obrigação tecer considerações na História da Arte para situar seu trabalho. Na fluidez das Escolas surgidas no Modernismo tornou-se lugar comum classificar os estilos conforme suas aparências e rotulando os artistas os enquadrando nas escolas ou movimentos, algo absolutamente desnecessário a partir dos anos oitenta.

Estudando o caso de Elizabethe e tendo visto amostra significativa de seu trabalho noto três vertentes nas quais busco validar em maior ou menor grau quanto ao conteúdo artístico de forma a situá-la em um movimento, embora as três vertentes confluam para uma mesma origem.

A primeira delas e que me despertou a atenção ( e que talvez em sua pureza seja a “água límpida da fonte”) é um trabalho elaborado em que o espaço pictórico está dividido em áreas de cor através de linhas curvas absolutamente precisas  criando setores como enclausurados, o que me remete ao trabalho de Sonia Delaunay (1885-1879)figura basilar da vanguarda parisiense no movimento Simultaneísta , que pela intersecção de cores criava sensação de movimento e profundidade entre os planos  –  pioneira portanto na abstração chamada inicialmente por Guilhaume Apolinaire de Cubismo Órfico ou Orfismo que considerava essa pintura uma poesia pura e iluminada. Vista com maior atenção aos detalhes a obra de Elizabethe não apresenta as cores chapadas de Sonia Delaunay embora possa existir uma cor chapada nuclear (como o amarelo tal como centro energético), cada cor é formada por linhas paralelas de cor em degradê possibilitando a passagem de uma cor para outra em nuances nas reservas.

A segunda vertente com grande número de trabalhos contempla um confronto entre as “reservas” de linhas paralelas de uma cor com pinceladas largas e soltas que podem ser lidas como símbolo arquetípico, no caso de um coração. Nessa vertente em particular quando as pinceladas largas correm soltas na cor roxa (que Jung define entre o humano e o divino, a harmonia entre opostos de Nicolau de Cusa na Alquimia e, portanto, do pensamento mágico)  não induzindo à leitura de um símbolo surgem obras que podem ser lidas como no movimento do Expressionismo Abstrato, e, diga-se, com grande mérito.

A terceira vertente em pequeno número leva à uma leitura zoomórfica, aves primitivas extremamente coloridas que situam os trabalhos dentro da Arte Ingênua, Primitiva ou Naif; noutro caso como representações claras de Galos, em si fortes símbolos maçônicos associados à Câmara das Reflexões, ao despertar do Homem e triunfo da Luz da Verdade sobre as Trevas da ignorância e da eterna vigilância sobre os atos. Pela conotação esotérica e por se afastar da sutileza de seus outros trabalhos para mim é o de menor relevância quanto a Estética.

Nas artes ocorrem situações que lembram o paradoxo de Heisinger na Física Quântica, os artistas criando conjunturas em que vivem em um espaço que está e não está simultaneamente, é o caso de Elizabethe Biscarra ao se colocar como “pintora quântica”, um estado de suspensão entre mundos.

Devido ao avanço tecnológico na Física e dos estudos entre experimentador e observador criou-se aquilo que poderia se chamar arte contextual  sobre a observação do Universo e seus elementos, o físico Brian Greene fala de um “tecido do Cosmo” ou seja de um relacionamento entre as partes isoladas entre si mesmas: dados x entropia, matéria x energia, decorrendo daí na teoria da física quântica de que o participante ordena o Universo a seu redor através das ondas quânticas de seu pensamento, ou seja, o  universo subatômico formado pelas partículas permitem ao ser humano interagir com as ondas, a experiência sendo passível de ser registrada como arte. Os filósofos Willem Flusser e Paul Virilio discutiram a questão sobre a matéria do Universo e de modo transverso sobre a arte sendo ela um espaço abstrato que não é das coisas, uma dimensão que não é massa nem energia fundamentando-se em Wilner – é o mundo imagético onde a imagem quântica seria a menor unidade funcional, algo próximo ao devaneio psíquico de André Breton no Automatismo Psíquico, fase inicial do Surrealismo.  Ela é uma terceira dimensão da matéria como não-coisa, tem caráter sempre transitório uma vez que na mecânica quântica ocorre ausência-presença pela onda em colapso, superposições e sobreposições.

Esse é o ponto crucial para compreender aquilo que Elizabethe denomina “pintura quântica” e que se afasta do Expressionismo Abstrato e da  Action Painting pelo embate físico entre artista e obra em que nesses o que interessa é o resultado final. Wolfgang Paalen ao se unir ao movimento Surrealista em 1935 foi pioneiro nessa tentativa de visualização na percepção humana de uma textura cósmica latente, obtida por meditação profunda próxima à meditação oriental pelo desligamento do corpo físico, entretanto os resquícios de formas permaneciam como fantasmas, memórias criptografadas, fantasias fundamentais vindos à tona do subconsciente através de uma rede simbólica complexa de ver o mundo. Cy Twombly em 1951 criou um estilo ao experimentar essa técnica do desenho automático chamado Grafismo como classificação até certo modo adequada à arte quântica como fenômeno ideomotor, Ictal Hipergrafia ou IMR. Esse impulso comportamental através da intensificação das ondas cerebrais do lobo temporal  como experiência extática em interação com as ondas quânticas do Universo se traduziria com grafismo artístico ao nos concentrarmos em um nível psicológico pré-consciente ao “olhar” a onda naquele breve instante antes de colapsar, algo como a iluminação budista, o Samadhi, em que não há espaço para o pensamento consciente.

Não existe filiação a essa ou aquela corrente artística de forma direta, se pensar em Leonardo da Vinci no século XVI ao escrever que não se deveria desprezar aquele olhar sobre as manchas da parede, as nuvens e a correnteza das águas para assim descobrir coisas novas (e inspiradoras) não há qualquer indício que estivesse naquela área nebulosa entre consciência e subconsciente, tratava-se de um fenômeno de senso percepção: a Apofenia , e as imagens assim criadas conscientemente como Pareidolias, um processo inverso em que o indivíduo vê algo conscientemente e não em transe, e o interpreta como manifestação artística.

Do ponto de vista artístico o ensaísta e filósofo Walter Benjamin analisando as obras de Hilma Af Kint as conceitua como de caráter aurático por tensionar entre o secular e o divino dentro do Abstracionismo. Essa artista de caráter esotérico fez parte daquele conjunto de pensamentos da Teosofia que remontam ao século XVIII e eclodem nos fins do século XIX com o Espiritismo, a Maçonaria Filosófica e o Rosacrucianismo. Como artista ela surge como pioneira pela quantidade de obras, contudo existem artistas anteriores, caso de Victor Hugo (1882-1885) e Arthur Wesley Dow (1857-1922) sendo a  primeira obra abstrata de Hilma datada de 1906 e antecedendo por quatro anos Kandinsky. Apesar disso o caminho de Hilma foi diverso dos anteriores por integrar a doutrina de Rudolf Steiner cuja preocupação era espiritual e via a capacidade do artista interagir com o plano elevado do pensamento tendo caráter simbólico, algo proposto por Annie Besant e Charles Webster Leadbeater na obra “Formas de pensamento” de caráter referencial na Teosofia que por sua vez tinha como origem o estudo filosófico “A doutrina das cores” de Wolfgang Goethe em 1810. Rudolf Steiner situava o suprassensível como “a maneira de nos propormos a criar a harmonia das cores e de como queremos as colocar na tela de modo preciso no impulso, deixando fluir essa experiência”.  Ocorre que fatores internos psíquicos e artísticos determinam a formação do ser humano e a análise simbólica junguiana é o instrumento para isso.  Na psicologia analítica de Jung o símbolo tem a ver com o Arquétipo, o particular conduzindo ao universal e vice-versa o que retorna ao pensamento de Goethe: “A matéria não existe e nada pode ser visto sem o espírito, nem o espírito sem a matéria”. A obra de arte consistiria numa operação simultânea de opostos, um sine qua non da criatividade e o trabalho finalizado terem a função de conciliação, exatamente da mesma maneira que o Lapis Philosophorum , a Pedra Filosófica da Alquimia concebida como símbolo do processo criativo no qual a obra artística criada é pessoal e transpessoal entre eterno e efêmero reconciliados.

O que foi dito sobre Hilma Af Kint de se tratar de um processo de “exaltação encantada” e que ocorre em muitos artistas como perda da noção de tempo pela rapidez na execução e de não haver correção nas pinceladas, aquilo que o grande crítico de arte Herbert Read disse ser uma “elocução divina” é o que sucede aqui com Elizabethe Biscarra.

Fez-se necessária essa digressão na História da Arte para traçar parentesco e uma definição estética no trabalho de Elizabeth Biscarra que situo como AUTOMATISMO PSÍQUICO, havendo trabalhos recentes (2001) de Laurence Caruana que denominam Arte Visionária pela ênfase na perfeição e delicadeza nos movimentos, algo distante do Expressionismo Abstrato e do Grafismo puro, entretanto por envolver questões controversas, tais como experiências de Metanoia Junguiana  pela transformação da psique do artista me afasto dessa classificação no caso em pauta.

Walter de Queiroz Guerreiro, Prof.M.A.

Membro da Associação Internacional de Críticos de Arte e da Associação Brasileira de Críticos de Arte.

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